sábado, 28 de setembro de 2013

Trigo e pão

Nossas inteligências vagueiam soltas, nuas e construídas. O fluxo dos pensamentos invade a segurança daquilo que em alguns momentos chamamos de paz. O sonho entorpecido do dia maximiza-se à noite quando a mente, de fato, livre, interpõe-se ao desejo de algo ser.
Isso já deixou de se tornar o que nunca foi: agora uma distorcida realidade equivale a uma doce confusão. E até que ponto vamos?
O lugar deixou de ter importância no exato instante em que a caminho pareceu infinito. A parada mostrou-se inócua no indefectível segundo em que o espaço revelou-se amplo e viável.
Certa vez ouvi de um mestre de uma tradição remota de um pequeno país: "não há trigo que sobreviva ao pão, e não há pão que sobreviva". Durante muito tempo minha insípida inteligência produtiva questionou a realidade do objeto que não perpassa nossos olhos - ora,  se não há trigo, nem pão... porém aos poucos foi e está aprendendo que pão, trigo e olhos são a mesma coisa e inexistem simultaneamente.
Aí ficou assim: sonho da realidade versus realidade do sonho. Nossos melhores métodos filosóficos  e científicos vacilam e continuarão vacilando enquanto o assunto for o "nada".
Por isso mesmo, permanecerão ignorando o derradeiro valor do "tudo".

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Tabacaria (Fernando Pessoa - Álvaro de Campos)


      TABACARIA
    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
    Gênio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
    Não, nem em mim...
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
    Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
    Ainda que não more nela;
    Serei sempre o que não nasceu para isso;
    Serei sempre só o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
    Crer em mim? Não, nem em nada.
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
    E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
    Escravos cardíacos das estrelas,
    Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
    Mas acordamos e ele é opaco,
    Levantamo-nos e ele é alheio,
    Saímos de casa e ele é a terra inteira,
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
    Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
    A caligrafia rápida destes versos,
    Pórtico partido para o Impossível.
    Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
    Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
    A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
    E fico em casa sem camisa.
    (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
    Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
    Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
    Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
    Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
    Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
    Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
    Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
    Meu coração é um balde despejado.
    Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
    A mim mesmo e não encontro nada.
    Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
    Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
    Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
    Vejo os cães que também existem,
    E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
    E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
    Vivi, estudei, amei e até cri,
    E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
    Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
    E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
    (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
    Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
    E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
    Fiz de mim o que não soube
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara.
    Quando a tirei e me vi ao espelho,
    Já tinha envelhecido.
    Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
    Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
    Como um cão tolerado pela gerência
    Por ser inofensivo
    E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
    Essência musical dos meus versos inúteis,
    Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
    Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
    Sempre uma coisa defronte da outra,
    Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
    Sempre o impossível tão estúpido como o real,
    Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
    Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
    Depois deito-me para trás na cadeira
    E continuo fumando.
    Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
    (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
    Talvez fosse feliz.)
    Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
    (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A ilusão da queda

Caímos. Dia após dia. Por períodos longos ou curtos. Conscientemente ou não.
Mas, caímos?
Se você resolveu continuar esta leitura mesmo depois que o verbo "cair" foi pontuado duas vezes seguidas e diferentemente, pode ser um bom sinal. Um sinal de que a certeza da queda pode não existir  de fato para você.
O mundo em que escolhemos viver nos faz uma proposta simples e sedutora a todo instante, sussurrando docemente para reunirmos condições propícias e intermináveis que gerem o nosso prazer imediato. E é aí que somos levados!
Muito menos pela condição natural de todas as coisas do que pela nossa própria avidez diante dos objetos que nos movem, olhamos e não percebemos que o início de cada processo já contém em si mesmo o seu final. Mas o mais grave é não sermos capazes de perceber nosso apego a esse ciclo.
Definitivamente (eis aí uma grande notícia) devemos olhar para as nossas vidas e diferentes caminhos com muita alegria, amor e fazer de cada etapa uma fonte de realizações e prosperidade. Contudo, se pudermos ir além disso teremos a oportunidade de observar como as coisas nascem, e que para vivermos dentro dessa tal "construção" é preciso apenas lucidez.
A pessoa lúcida percebe a verdade oculta de todas as coisas no próprio ato em que a vontade é soberana. O ser consciente enxerga que não existe queda porque não existe chão! Ora, quantas e quantas vezes passamos por situações de profunda tristeza e angústia e algum tempo depois estamos de pé, prontos para a próxima etapa? Quantas vezes a dor pareceu ser dilacerante e desmanchou-se no ar? Mesmo não sabendo agíamos com uma dose de lucidez e entendimento inatos que, agora, bem entendidos e treinados só poderão nos fazer bem.
A ironia de tudo isso é que mesmo quando não conseguimos nos levantar, também não paramos de cair (!). Aqui está mais uma prova de que não há chão... e se não houver chão, não há porque temer. E se não há porque temer, não haverá queda.
Longe de ser simples, esse esquema precisa ser levado ao ponto onde não realizamos construções, ao lugar de onde tudo vem e para onde tudo vai. Paremos por alguns instantes e contemplemos que, apesar da nossa sujeição à impermanência e à noção constante de queda, olhamos para os machucados e, gloriosamente, seguimos.
Essa é uma das mais importantes e enriquecedoras práticas de vida e nos trará benefícios na mesma medida em que levar a nossa mais positiva energia para o mundo. Melhor do que perceber a queda é identificar aquilo que parece nos derrubar.

Boa semana a todos!

Este texto é uma colaboração para o Instituto Aline Pastori
www.institutoalinepastori.com.br

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Nossas verdades, novos pensamentos.


Por sermos bombardeados pela assustadora velocidade de todas as coisas, pouco percebemos quem vamos nos tornando. A cada dia deixamos de observar o que de fato importa e que norte poderíamos tomar nas curvas e descidas deste fascinante viver. Essa pode parecer uma constatação desastrosa. Mas não é.
Temos uma vida preciosa, e ao observarmos todos os outros seres que nos cercam (com esforço, alguns até que não podemos ver...), perceberemos como temos bênçãos incontáveis para fazer da nossa rápida passagem por este planeta um estandarte de méritos e bem-estar coletivos. Por mais difícil que possa parecer às vezes, não devemos nos deixar enganar: cada dia é um dia de praticarmos o que temos de melhor, em todas as direções, sem esperar nada em troca, confiantes e exultantes.
Uma notícia (daquelas que não veiculam os jornais) pode parecer, porém, um pouco desanimadora: todas os aspectos das nossas preciosas vidas estão em transição - por pouco ou muito tempo, estão à nossa vista e ao nosso alcance e depois não estão mais...por mais força que façamos para tentar manter o que é bom e afastar o que não é tão bom assim, tudo vem e vai. E isso inclui a nós mesmos. Por isso vale à pena consultarmos nosso facebook íntimo e contemplarmos nossas postagens de alguns anos, meses, semanas e dias atrás. Quantas coisas diferentes.
Ainda que pensemos tratar-se de algo ruim, devemos repousar na sensação de que continuamos e seguimos ora trôpegos, ora faceiros. E na visão de que apesar das circunstâncias transitórias, há um ciclo incrivelmente permanente dentro da própria impermanência: se aquilo que é bom acaba, aquilo que não é acaba também.
A pergunta que pode nos tocar em algum momento é: por que somos assim? por que sonhamos determinados sonhos tão assustadoramente reais? por que pensamos de um jeito e agimos de outro? ou ainda, até quando seremos pegos de surpresa e arrastados pelas nossas emoções e pelas emoções dos outros?
Que verdade mágica, inexorável e avassaladora! E que oportunidade única de se reinventar a todo instante... quanta calma é preciso ter diante do(s) carma(s)!
As marcas trazidas em nossa mente e corpos sutis podem nos dar uma explicação de como estamos e do que somos feitos em determinado momento. E isso é tudo: se olharmos e não gostarmos do que estamos vendo, temos uma oportunidade de melhorar; se olharmos e gostarmos, ainda sim temos a mesma oportunidade. Só que aí de forma mais ampla, atingindo um número infinito de seres.
O sofrimento brilha para nós na mesma medida que o encanto, deixando-nos  presos à sensação de nadar no mesmo lugar, inertes. Coisas boas e ruins acontecem e podemos ter a sensação de apenas lutar para manter as circunstâncias que afastam a dor e aumentam o prazer. Que chance poderosa para podermos crescer e dar sentido à vida!

Escolhamos nosso refúgio, portanto. Sólido e indômito. Caloroso e real. Infinito e poderoso. A dor desaparecerá. O mar de pensamentos e sonhos se tornará calmo e doce. E os prazeres serão reais e absolutamente bem vividos. Passo a passo, respiração a respiração, via a via do caminho. Agora.

Samsara, felicidade tabajara.

Curioso, assustador. Confuso e sedutor.
O samsara trata-nos assim: entrega aparências e uma sensação de solidez quase real. E, longe de ser surreal, desmancha-se a cada tentativa de permanecer que nele fazemos.

Identidades, certezas, amores e maldades. Tudo o que é solido se esparrama à vista dos sentidos todos, entorpecidos. O pulso da aversão cintila sob o calor que desprende do peito e domina; gostar e não gostar já que mais possibilidades são....Senis convicções.

Estritos e restritos solfejamos o mundo inertes ao que somos de fato. E passamos a ser apenas o que temos sido. Sem o menor perigo de dar certo. Seguindo, apenas. Segundos.

Samsara diz que entrega, mas a fome continua. Samsara diz que faz, mas jaz tranquilo na soberba ignição dos desejos incríveis. Samsara ilusão , contigo contidos iludimo-nos contudo confusos distantes.
E pedimos mais.

Só esquecemos de perguntar: mais de que?