sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A pipa

Hoje coloquei uma pipa no alto pela primeira vez. Após 37 anos pude sentir um pouco da sensação que faz com que a molecada passe dias, semanas, meses e até anos correndo atrás de papel colado em varetas.
O momento em que o vento empurra o brinquedo para cima e o ar segura aquele corpo leve é mágico. Há uma sensação de que quem voa somos nós, e quanto mais linha soltamos um pouco mais de nossas amarras íntimas se deixam ir também.
Foi então que algo se revelou: observando a estabilidade da pipa a muitos metros de distância em direção ao céu, percebi que o encantamento sutil estava (e está) por trás de tudo aquilo! Além da brincadeira inocente está o infinito, o local onde podemos incessantemente acessar nossa natureza última e onde estão as respostas que esclarecem todas as nossas dúvidas. 
Ali, extasiado com a pequena conquista, entendi porque as pessoas encantamo-nos com todo e qualquer movimento de colocar objetos no alto. Como um rio que procura o oceano, temos estado permanentemente buscando o céu. Precisamos apenas reconhecer. 
Uma pipa, um balão, um aeromodelo ou até mesmo uma simples viagem de avião. Eis nossas tentativas de aproximação com o desconhecido sublime e com o divino. Mesmo caindo ou deixando cair, continuaremos tentando. Essa é a nossa natureza.

A tristeza do oceano

É triste o oceano? 
Assim que avistei o pequeno açude da remota cidade em que estou hospedado essa pergunta retumbou num alerta. Ou melhor, numa possibilidade: está triste o oceano.
As águas esverdeadas e com discreta movimentação do pequeno lago fizeram-me imaginar de onde elas vinham e para onde iriam desde sempre. Não foi preciso muito esforço para entender que, salvo alguma intervenção humana muito contundente, aquelas águas desaguarão num riacho, que desaguará num rio maior que invariavelmente se encaminhará para o oceano vasto.
É da lei, não tem como não acontecer.
Percebi, entretanto, que não é assim que temos seguido. Como um pequeno lago de pesqueiro, andamos imersos nos nossos sonhos de lago, acreditando que se houver algumas poucas pessoas com suas varas de pesca na nossa borda estará tudo bem. Inebriados com a energia que brota das pequenas disputas diárias (nas quais lutamos para reafirmar nossas pequenas identidades), não percebemos que, assim como o longínquo açude, ficamos com a sensação de que precisamos represar a tudo e a todos para existir.
Nem percebemos que se deixarmo-nos ir na corrente natural da nossa existência, desaguaremos na infinitude doce das águas salgadas e profundas da sabedoria universal. Não há o menor perigo de dar errado!
O que nos falta então? Por que ainda pensamos gostar dos sonhos de lodo da pequena lagoa e seus peixes que são fisgados todos os dias? Onde está o caminho libertador rumo ao oceano?
Se tivesse que arriscar, diria: está tudo no mesmo lugar, só esperando ser tocado, despertado num trajeto de simplicidade constante e energia luminosa. Disponível e que espera por nós.
Desta forma o oceano nos sorrirá, enfim.

Burros n'água

Que 2014 seja o ano em que daremos com os burros n'água!
Sim! Que o nosso planejamento não tenha sucesso e que o nosso caminho não seja reto. Que possamos olhar de um lugar considerado desconfortável e entender a transitoriedade e impermanência de tudo, absolutamente tudo o que nos cerca.
Quando estivermos imersos em sonhos de controle, de auto-aceitação e de apropriação, que a vida nos contemple com toda sua força e nos desacomode, sacuda-nos para nos mostrar que nossa liberdade começa exatamente onde está a nossa prisão, e que nossas prisões estão sutilmente (ou não) camufladas onde acreditamos estar nossas liberdades e respostas todas.
Mas se ainda assim duvidarmos, que paremos por um instante e reexaminemos nossas vidas até agora e olhemos para as nossas inseguranças, ansiedades e medos. De onde vêm eles? Repetem-se ou acontecem uma vez e desaparecem? A partir daí perguntemo-nos carinhosamente se precisamos de mais ou menos atividades para criar e manter as mesmas ilusões e seus inevitáveis sofrimentos, num ciclo interminável de uma letargia aparentemente agitada. Que sejamos capazes de nos encarar no silêncio e domarmos a força dinâmica das nossas tendências a partir da lucidez serena e imutável.
É possível que o medo se instale cobrando uma conta por serviços prestados, mostrando suas garras de suposta proteção. Aí teremos a escolha de sentirmos o seu vento e uma vez mais nos cobrirmos com orgulho e raiva, ou de agirmos na deliciosa opção do sorriso penetrante, como sorriríamos (e riríamos) de um tigre que estivesse para nos devorar, mas que estivesse se mostrando banguela na hora do bote. No máximo, oferecerá uma boa luta.
Como escreveu Gustavo Gitti, na sua coluna da revista Vida Simples deste mês: " que o nosso planejamento dê errado em 2014." 
Que dar errado signifique de uma vez por todas o nosso grito de liberdade de tudo e de todos que por tempos imemoriais nos disseram o que fazer e como fazer. Que entendamos, porém, que o fizeram na intenção melhor de suas mentes condicionadas pelo desejo inconsciente de sucesso (nos outros) deles próprios e pela necessidade de adquirir segurança onde há apenas o medo de perder o controle. E que os amemos e os aceitemos incondicionalmente.
Que sejamos sábios e corajosos para encarar a subida, a simplicidade, o sorriso franco e a resposta dura. Que possamos construir sonhos conjuntos e coletivos sem a instabilidade da estabilidade e que, quando eles oscilarem, mostrem-nos toda a nossa capacidade de reivenção, de ludicidade e de amor.
Que surja, por fim, a paz que brota pura da paciência perfeita, estável e indestrutível. Sem sucesso, apenas destemida. Destemidos.


sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Dia 26

Caro Papa Francisco,

Quero te fazer um pedido. Espero que o senhor tenha a disposição e os meios hábeis para analisá-lo com carinho, na medida em que te for possível.
Ajude-nos a comemorar o dia 26. Mais do que antes, tenho reparado no empenho que todos temos em felicitar os nossos queridos nos dias 24 e 25. Os asilos, casas de repouso, orfanatos e hospitais ficam cheios nesses dois dias. Parentes solitários vêem suas casas repletas e se alegram em oferecer hospitalidade e um sorriso. Mas no dia 26, lotadas ficam as estradas das praias e dos interiores externos. Nosso contato com o mundo limita-se ao cheiro de borracha queimada no asfalto. Aí os lares solitários emudecem.
Francisco, crie um novo estatuto, convoque um novo concílio, proclame uma nova dependência! Que ela seja parte das comemorações da vida de sempre de todos os dias, como se ficassem guardados carinhosamente mais alguns presentes para o dia seguinte.
Que depois das balbúrdias gastronômicas venha a paz da companhia. E que depois do êxtase do consumo, sintamos o prazer perene da compaixão... Mas, caro papa, tem que ser no dia 26! Porque já, neste dia, esquecemos de tudo que nem sequer havíamos lembrado, na forma divina.
Então, pensando bem, vamos comemorar o natal no dia 26! O que o senhor acha? Depois de termos passado por dias de intensa interação social numa inteireza suspeita, poderíamos, se for o caso e o senhor concordar, lembrar do Cristo e todos os ensinamentos de compaixão e amor, da nossa mera transitoriedade neste mundo ilusório, da importância de reconhecermos nossos companheiros espirituais que conosco farão a travessia desta existência.
Mas, Francisco, para isso precisamos de uma nova data, um novo decreto, uma nova convenção. Uma nova lei que nos diga como é incrível surpreender um avô no asilo depois que o papai-noel já tenha passado, ou de fazer uma visita para aquela tia solitária que reclama de dores na alma, nos sonhos, nas pernas. Se o senhor realmente aceitar meu humilde pedido, dê-nos a coragem de olhar para os moradores de rua, pedintes, crianças desamparadas, assaltantes, assassinos e excluídos com o mesmo olhar amoroso com que olhamos para os que gostamos e incluímos diariamente nas nossas orações parciais. Sei que é possível, mas sem sua mensagem o mundo não quererá acreditar nestas palavras desconexas e trôpegas.
Por isso, caro papa Francisco, estou pedindo o que peço: um dia depois de amanhã com a mesma preocupação dos amigos que, secretos, presenteiam o outro com o cuidado de agradar, mas que agora não esperam mais o presente de volta. Ajuda-nos a ter  um dia 26 de amor, alegria, compaixão e equilíbrio em nome de todos os seres que desejam superar o sofrimento e tudo o que estiver ligado a ele e que anseiam pela felicidade genuína e por todos os seus caminhos e atalhos sutis.
É o que te peço de dia 26.
Feliz dia 26.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Sonhos

Sonhamos o tempo todo. É realmente curioso notar nossa relação dispersa com o momento e com a realidade. Arrisco-me a pensar que no máximo criamos uma relação estável com as verdades relativas nossas e do mundo.
Atualmente, ganhamos objetos que nos fazem sonhar ainda mais, compondo em frações de segundos realidades alternativas com fotos, gráficos, comentários e todo tipo de interação instantânea. 
Ou seja, seguimos dormindo! No trânsito é fácil perceber (perceber?..): parados ou em movimento nossas mentes estão quase o tempo todo longe, reconstruindo o passado ou delirando num movimento  de futuro incerto, inerte. 
A grande prova disso é que nem sequer notamos se estamos respirando ou não e que nosso olhar logo fica distante, assim que acreditamos estar prestando atenção em alguma coisa. 
É incrivelmente surpreendemente a nossa  capacidade de lidar com várias realidades paralelas e não estar em nenhuma. Revelador, porém, é descobrir que não precisamos caminhar assim. Bastamo-nos apenas com uma atenção, com um foco que, de tão rico e abrangente, coloca-nos o tempo todo em contato com a verdadeira realidade. E é tão simples que não dá pra entender porque passamos tanto tempo sem nem desconfiar. Função básica e incessantemente presente: respirar com consciência. Apenas e sempre. 
Sem descartar nada. Integrando tudo e a todos com o olhar, com a escuta, com a alegria e com a coragem. 

Quando estamos dormindo e começamos a sonhar, temos sensações, entramos em disputas, fugimos ou regozijamos. Aí acordamos (...) e pensamos que aquilo tudo acabou.
Quando sonhamos de olho aberto estamos fazendo a mesma coisa: projeções, esperanças, arrependimentos, raivas e medos que trazem consigo uma noção de solidez que igualmente ao sonho do sono não existe. Para tirar a prova, observemos que basta o celular tocar com uma mensagem do ser amado e tudo muda como num passe de mágica! Aquilo que nos afligia ou inebriava cessa por alguns instantes, misteriosamente. 
Não haveria problema se isso não nos causasse sofrimento: pequenas desatenções, pequenos acidentes, grandes desatenções e grandes descuidos com o outro, imerso nos seus tantos outros problemas e sonhos. Descuido conosco mesmo, sobretudo. 
Fortalecemos assim nossa separação com o mundo externo  e com a realidade construtiva dos fenômenos, desenvolvendo um individualismo sonolento e perigoso. Deixamos de apreciar a riqueza que é acordar e sentir tudo como uma projeção interna, inseparável do momento que estamos experimentando. 
Seja numa curva de estrada, numa discussão de trânsito ou ainda numa simples falta de percepção das nossas reais necessidades e das pessoas à nossa volta, sonhamos acordados com um mundo que não está lá e que se dá a impressão que está, acaba no mesmo instante.
Corremos desenfreados como se estivéssemos num sonho - desses que vivemos à noite, na cama, aquecidos. Não muito diferente da própria vida e da morte, usufruindo da liberdade infinita das nossas mentes. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Paulo Leminski

nunca cometo o mesmo erro

duas vezes

já cometo duas três

quatro cinco seis

até esse erro aprender

que só o erro tem vez


(Paulo Leminski)

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Lucidez e engano

Dona Norma está triste. Assim que a cumprimento ela se lamenta por não conseguir mais andar. Um choro tímido descortina o desejo de se mexer, de não mais depender da caridade alheia, de viver uma vida de outros tempos. Aos 84 anos ela ainda não percebeu por completo que o tempo é o tempo, e que o corpo é o corpo.
Ao lado dela está a sorridente Dona Alice. Por trás de uma confusão mental que alterna momentos de esquecimento, doçura e fúria, ela me olha com um ar de encantamento simples e infantil. Sem que eu pergunte nada, faz um elogio e sorri tímida, satisfeita.
Já Dona Gioconda é um abraço só. Parece querer um abraço e só. Abre os braços como quem já perdeu a vergonha de demonstrar e pedir carinho... impossível não sorrir e não retribuir com o abraço mais caloroso que houver. Impossível não sorrir um pouco mais.
Minha tia, motivo inicial da minha visita, já não me reconhece: apesar de um corpo ainda operante, seu cérebro vive um sonho de gradual esquecimento e desapego. Irmãs, filhos, netos e sobrinhos são menos que poeira para aquela mulher de 81 anos. No entanto, a mãe (minha avó) nunca é esquecida. É como se ela estivesse retornando ao ponto de origem gradualmente.
"Nega" não se casou. Ouço sua história e percebo um certo bom-humor ao contar que seus dois noivos morreram pouco antes de subirem ao altar com ela. Pergunto (brincando) se estou seguro ficando ali ao seu lado e a resposta é uma gargalhada. Sei que estabelecemos uma conexão e então ollho pro lado.
Lá está Dona Olga. Dormindo, com uma sonda que invade seu frágil corpo pelo nariz. Imóvel. Cansada. Sonha sonhos de outros mundos (suponho) e tudo que posso fazer é rezar perto dela e sussurrar ao seu ouvido que tudo está bem. Que tudo ficará bem. E que ela mantenha a calma, haja o que houver.

Ouço sorrisos e histórias divertidas. Mas também vejo a dor, as saudades, a carência e os olhares distantes. Como em Dona Odila que espera (im)pacientemente pela filha que nunca chega. De bolsa a postos, repete de forma ininterrupta que voltará para casa a qualquer momento; que está ali apenas fazendo companhia para as outras senhoras e senhores por um tempo. Conta suas aventuras culinárias num tom nostálgico e reclama mais um pouco, de tudo.
Tranquilamente está Dona Carmem, que fala com muita clareza e vivacidade sobre o marido italiano e a relação por vezes dura no casamento, sobre os cuidados com os filhos e sobre uma vida que ficou para trás. Ela, uma das poucas pessoas de corpo ainda saudável daquela sala, confessa que tem vontade de comer pêra. Simples assim.
Dona Marlene está brava comigo. Não gostou que eu tivesse passado a mão nas costas dela como sinal de acolhimento. Com grande dificuldade de articulação nas palavras, fala alto dizendo que aquilo não se faz e que é melhor eu ir embora. Tento uma reaproximação, mas nada feito. 

Fico mais um pouco  e paro por um instante para contemplar a paisagem e ver se aprendo alguma coisa. Observo numa fração de preciosos  e assustadores segundos a nossa capacidade de cometer tantos enganos, de perder tempo com disputas, jogos e emoções perturbadoras que não nos levarão a lugar algum! Tento imaginar quanto orgulho, raiva, medo, desejo e apego deve ter existido (e ainda existir) para aquelas pessoas e como é possível que em vários momentos elas tenham pensado que tudo estava muito bem e que valeria à pena todos os esforços para que o status se mantivesse. E que não perceberam que nada, absolutamente nada se mantém igual por pouco ou muito tempo.
Perplexo concluo que isso acontece com todo mundo sempre. Respiro.

Quanto arrependimento e mágoa pode haver por trás daquelas rugas e semblantes desanimados? Quantas vontades não saciadas ainda dormem naqueles corpos já tão combalidos? E a mais assustadora das perguntas não tarda a aparecer: como ficamos hábeis em deixar nossos queridos pais e mães, avôs e avós, tios e tias, amigos e amigas, esquecidos e escondidos, enquanto cuidamos da vida, dos mesmos jogos, raivas, apegos, medos e orgulho que eles mesmos um dia tentaram controlar? O que nos falta para acordamos e vermos que se tudo der certo (...), um dia estaremos lá também sucumbindo solitariamente a nós mesmos?! Onde está a dificuldade em enxergar que tudo aquilo pelo que lutamos fervorosamente não poderá nos ajudar quando nada de fato importar?

Como não percebemos o caminho, o engano e a repetição do mesmo padrão? 

Como não entendemos que desperdiçamos de forma absolutamente bem planejada, estruturada e orgulhosa aquilo que temos de mais precioso?...

Na hora de ir embora chego perto do Sr. Cláudio, que hoje não enxerga mais e pergunto um pouco desconcertado se está tudo bem. Ele me responde com um sorriso sem dentes e com um olhar opaco e distante, cheio de uma lucidez surpreendente: " está tudo bem, tudo ótimo".

E vou cuidar da minha vida. Dos meus jogos.