Dona Norma está triste. Assim que a cumprimento ela se lamenta por não conseguir mais andar. Um choro tímido descortina o desejo de se mexer, de não mais depender da caridade alheia, de viver uma vida de outros tempos. Aos 84 anos ela ainda não percebeu por completo que o tempo é o tempo, e que o corpo é o corpo.
Ao lado dela está a sorridente Dona Alice. Por trás de uma confusão mental que alterna momentos de esquecimento, doçura e fúria, ela me olha com um ar de encantamento simples e infantil. Sem que eu pergunte nada, faz um elogio e sorri tímida, satisfeita.
Já Dona Gioconda é um abraço só. Parece querer um abraço e só. Abre os braços como quem já perdeu a vergonha de demonstrar e pedir carinho... impossível não sorrir e não retribuir com o abraço mais caloroso que houver. Impossível não sorrir um pouco mais.
Minha tia, motivo inicial da minha visita, já não me reconhece: apesar de um corpo ainda operante, seu cérebro vive um sonho de gradual esquecimento e desapego. Irmãs, filhos, netos e sobrinhos são menos que poeira para aquela mulher de 81 anos. No entanto, a mãe (minha avó) nunca é esquecida. É como se ela estivesse retornando ao ponto de origem gradualmente.
"Nega" não se casou. Ouço sua história e percebo um certo bom-humor ao contar que seus dois noivos morreram pouco antes de subirem ao altar com ela. Pergunto (brincando) se estou seguro ficando ali ao seu lado e a resposta é uma gargalhada. Sei que estabelecemos uma conexão e então ollho pro lado.
Lá está Dona Olga. Dormindo, com uma sonda que invade seu frágil corpo pelo nariz. Imóvel. Cansada. Sonha sonhos de outros mundos (suponho) e tudo que posso fazer é rezar perto dela e sussurrar ao seu ouvido que tudo está bem. Que tudo ficará bem. E que ela mantenha a calma, haja o que houver.
Ouço sorrisos e histórias divertidas. Mas também vejo a dor, as saudades, a carência e os olhares distantes. Como em Dona Odila que espera (im)pacientemente pela filha que nunca chega. De bolsa a postos, repete de forma ininterrupta que voltará para casa a qualquer momento; que está ali apenas fazendo companhia para as outras senhoras e senhores por um tempo. Conta suas aventuras culinárias num tom nostálgico e reclama mais um pouco, de tudo.
Tranquilamente está Dona Carmem, que fala com muita clareza e vivacidade sobre o marido italiano e a relação por vezes dura no casamento, sobre os cuidados com os filhos e sobre uma vida que ficou para trás. Ela, uma das poucas pessoas de corpo ainda saudável daquela sala, confessa que tem vontade de comer pêra. Simples assim.
Dona Marlene está brava comigo. Não gostou que eu tivesse passado a mão nas costas dela como sinal de acolhimento. Com grande dificuldade de articulação nas palavras, fala alto dizendo que aquilo não se faz e que é melhor eu ir embora. Tento uma reaproximação, mas nada feito.
Fico mais um pouco e paro por um instante para contemplar a paisagem e ver se aprendo alguma coisa. Observo numa fração de preciosos e assustadores segundos a nossa capacidade de cometer tantos enganos, de perder tempo com disputas, jogos e emoções perturbadoras que não nos levarão a lugar algum! Tento imaginar quanto orgulho, raiva, medo, desejo e apego deve ter existido (e ainda existir) para aquelas pessoas e como é possível que em vários momentos elas tenham pensado que tudo estava muito bem e que valeria à pena todos os esforços para que o status se mantivesse. E que não perceberam que nada, absolutamente nada se mantém igual por pouco ou muito tempo.
Perplexo concluo que isso acontece com todo mundo sempre. Respiro.
Quanto arrependimento e mágoa pode haver por trás daquelas rugas e semblantes desanimados? Quantas vontades não saciadas ainda dormem naqueles corpos já tão combalidos? E a mais assustadora das perguntas não tarda a aparecer: como ficamos hábeis em deixar nossos queridos pais e mães, avôs e avós, tios e tias, amigos e amigas, esquecidos e escondidos, enquanto cuidamos da vida, dos mesmos jogos, raivas, apegos, medos e orgulho que eles mesmos um dia tentaram controlar? O que nos falta para acordamos e vermos que se tudo der certo (...), um dia estaremos lá também sucumbindo solitariamente a nós mesmos?! Onde está a dificuldade em enxergar que tudo aquilo pelo que lutamos fervorosamente não poderá nos ajudar quando nada de fato importar?
Como não percebemos o caminho, o engano e a repetição do mesmo padrão?
Como não entendemos que desperdiçamos de forma absolutamente bem planejada, estruturada e orgulhosa aquilo que temos de mais precioso?...
Na hora de ir embora chego perto do Sr. Cláudio, que hoje não enxerga mais e pergunto um pouco desconcertado se está tudo bem. Ele me responde com um sorriso sem dentes e com um olhar opaco e distante, cheio de uma lucidez surpreendente: " está tudo bem, tudo ótimo".
E vou cuidar da minha vida. Dos meus jogos.